terça-feira, 5 de abril de 2016

O fortalecimento necessário do servidor público e dos Comitês de Bacia é destaque do 3° Seminário Governança das Águas da Bahia

No dia 23/03/2016 a ASCRA promoveu o 3º Seminário de Governança das Águas da Bahia, com apoio da Frente Parlamentar Ambientalista, da ASSERF e da SIHS. O evento contou com um público diverso incluindo, entre outros, servidores da SEMA, do INEMA e da SIHS, estudantes, conselheiros de unidades de conservação, membros de comitês de bacias, lideranças indígenas e quilombolas, totalizando cerca de 200 participantes.

Na mesa de abertura, a presidente da ASCRA, Sara Alves, deu o tom do diálogo: o desafio de dar vez e voz às decisões dos Comitês para efetivar a participação social na gestão de recursos hídricos. Ainda na mesa de abertura, o representante da SEMA afirmou que fazer comitês de bacia sem os instrumentos de gestão é populismo e que a cobrança é um instrumento para viabilizar as ações do plano, o que nos deixa ainda mais à vontade para, enquanto cidadãos, cobrar da gestão a implantação dos instrumentos, tais como os planos de bacia e o cadastro de usuários.
 A seguir apresentamos uma síntese das ricas discussões que ocorreram ao longo do dia:

Governança e democracia
No período da manhã se realizou a Mesa “Modelo Institucional de Gestão das Águas e Participação Social”, com a participação da ex-diretora do IGAM, Marília Carvalho, da Promotora Luciana Khoury (MP/BA), da Profª Yvonilde Medeiros (UFBA) e mediada pelo Prof. Severino Agra (UFBA).
O Prof. Severino Agra (UFBA) ressaltou que a governança só pode acontecer em democracias e que o avanço da democracia impõe uma gestão pública com maior legitimidade social dos processos decisórios; e apresentou, como um dos grandes dilemas a ser resolvido na Bahia, a recente integração da outorga com o licenciamento, causando prejuízos à gestão de recursos hídricos.

Fortalecimento do servidor e outras experiências de MG
A ex-diretora do Instituto de Gestão das Águas Mineiras (IGAM) trouxe sua experiência enquanto servidora na direção de um modelo de gestão participativa, e relatou que quando assumiu a diretoria, pediu aos servidores que apresentassem sua proposta para a gestão do Instituto, porque entende que um instituto só funciona se tiver a cara dos seus servidores. Ainda trouxe diversas outras experiências que podem nos inspirar no aperfeiçoamento da nossa gestão:
  • A ida da outorga para dentro do sistema de licenciamento dificultou o controle e a consistência dos dados quantitativos do uso da água no estado, a exemplo do que acontece na Bahia;
  • Em MG, as outorgas de significativo impacto passam pela aprovação do Comitê de bacia, após a análise técnica do Instituto, para que o Comitê aprove ou não aquela outorga;
  • Em MG, 7,5% do Fhidro (o fundo de recursos hídricos) é destinado para os Comitês, e está em tramitação um projeto de ampliar esse percentual para 15%;
  • Falou sobre os diversos canais de comunicação, que conferem maior divulgação e transparência às ações em recursos hídricos: informativos do Comitê, Clipping dos Comitês, Boletim Qualidade das Águas e Informativo Fhidro;
  • Comentou sobre a avaliação de desempenho dos comitês, com base em indicativos, e que está sendo aperfeiçoada.
Para finalizar, Marília propõe como desafio a mudança de paradigma, da gestão focada em processos (número de comitês, planos, outorgas, etc.) para gestão focada em resultados (implementação dos planos, efetivação do enquadramento, discussão dos mecanismos e efetividade da cobrança, etc.); e reforça que o fortalecimento do órgão gestor e dos servidores é fundamental para o adequado funcionamento dos comitês, e vice-versa.

O papel deliberativo dos Comitês e um panorama da realidade baiana
Ainda pela manhã, a Profa. Yvonilde Medeiros (UFBA) falou sobre segurança hídrica e destacou que a Política Nacional de Recursos Hídricos estabelece que o papel dos Comitês não é só consultivo, como muitas vezes se pratica; que os Comitês são entes deliberativos e, portanto, suas decisões devem ser respeitadas. Encerrando as exposições da mesa de diálogo da manhã, a promotora Luciana Khoury (MP/BA) comentou que a flexibilização do licenciamento ambiental, sobretudo para a agricultura, grande usuária de água, fragiliza a gestão de recursos hídricos; falou sobre as deficiências nas informações por parte dos órgãos gestores de recursos hídricos na Bahia, sobretudo no que diz respeito a outorgas e cadastro de usuários; e concluiu sua apresentação traçando um panorama da realidade da gestão de recursos hídricos na Bahia: pouca sistematização e disponibilização das informações, pouco investimento em mobilização, pouca valorização e estímulo para a participação, e desrespeito às decisões colegiadas.

Conflitos socioambientais pelo uso da água

Na abertura do debate para os demais presentes, representantes quilombolas e tupinambá da APA Joanes-Ipitanga e do Comitê da Bacia do Salitre denunciaram casos obras “de desenvolvimento” sendo realizadas à revelia das comunidades tradicionais e pediram ajuda aos órgãos gestores; ainda, após o recente desastre da barragem de Mariana, não puderam deixar de se mostrar preocupados quanto à segurança das barragens baianas. Citaram os exemplos:
  • A Via Metropolitana Camaçari-Lauro de Freitas, licenciada pelo INEMA, cujo traçado atravessa as comunidades indígena e quilombola da Quingoma;
  • A barragem de Ourolândia, da CODEVASF, feita sem nenhuma consulta pública, prejudicando os quilombolas;
  • A barragem do Jambeiro, no rio Joanes.
Sobre o assunto, a promotora Luciana Khoury comentou que o Salitre é um caso que levanta preocupações ao Ministério Público; que não se tem o controle da qualidade das águas em relação aos agrotóxicos, é um dos graves problemas a enfrentar; e que o descomissionamento da barragem de Ourolândia e de outras barragens na região deve ser discutido em conjunto: pelo Ministério Público, pelo INEMA e pelo Comitê.

Cobraça sem plano de bacia
Ainda no debate, discutiu-se sobre a implantação de cobrança pelo uso da água sem que se tenha antes o plano de bacia aprovado. Sobre o assunto, Marília informou que não houve em MG nenhum caso de cobrança sem plano, e sua opinião é contrária a essa situação, já que sem planejamento para a destinação dos recursos, os mesmos iriam para o setor que tivesse mais poder dentro da bacia. A Profª Yvonilde opinou que não existe como fazer cobrança se não temos plano, se não temos enquadramento, se não temos um sistema eficiente de outorga, e se não temos informação. Luciana opina que a implementação da cobrança antes do plano deve ser discutida com os Comitês e com os técnicos, e que não pode ser uma decisão da Secretaria isoladamente.

Também se discutiu sobre a postura do órgão licenciador e seus servidores perante as deliberações dos Comitês, sobre a falta de informação motivada por vaidade institucional (mudança de bancos de dados a cada gestão), e sobre o fortalecimento institucional dos comitês, que embora necessário não se efetiva. Sobre o assunto, a Profa. Yvonilde coloca que os servidores têm que atuar como cidadãos, e que a própria organização do Seminário é uma resposta à indignação perante o sistema, e ainda questiona onde está o sistema de outorga da Bahia que era premiado, era um dos melhores do Brasil. E Marília, mais uma vez, coloca que o fortalecimento do órgão gestor – sobretudo através do fortalecimento dos seus servidores - é fundamental para o fortalecimento dos comitês, e vice-versa.

A percepção dos Comitês
Pela tarde, a Mesa “Comitês de Bacia: Realidades e Vivências” contou com a presença dos presidentes dos comitês de bacia do São Francisco e do Rio de Contas, Anivaldo Miranda e Aurelino Meira, e de Felipe Benício, membro do Comitê da bacia do Rio Doce, mediada por Gabriel Palma, servidor do INEMA e ex-diretor da ASCRA.
Gabriel Palma ressaltou a importância da democratização da informação para garantir a participação social na gestão de forma equitativa; e sugere um encontro, ainda esse ano, entre os diversos colegiados ambientais da Bahia (comitês, CONERH, CEPRAM, CIEA, etc.).

Experiências do Velho Chico
Anivaldo Miranda trouxe inúmeras informações e experiências vividas enquanto presidente do comitê do São Francisco, entre elas:
  • Comentou que a Política Nacional de Recursos Hídricos, a Lei 9433/97, é uma lei maravilhosa, que traz todos os elementos que o país precisa para uma boa gestão de recursos hídricos, mas é pouco cumprida respeitada; e fez a analogia: “é como se fosse um roteiro de um filme maravilhoso, mas o filme precisa ser produzido”.
  • Comentou que muitos enxergam o Comitê como uma ONG; que o próprio poder público é o primeiro a tratar os Comitês como ONGs. Mas o Comitê não é ONG, é um novo ente, que surge em um contexto complexo, em que o Estado sozinho não consegue gerir os recursos públicos. Enfatizou que os Comitês precisam ser fortalecidos e empoderados, e que o poder público é o incubador desse processo. Denunciou que inúmeras vezes o poder público desconsidera as deliberações do Comitê sobre os conflitos, a exemplo das restrições de vazão da barragem de Sobradinho;
  • Informou que o Comitê está discutindo a revisão das regras de operação dos reservatórios no sentido de considerar o hidrograma natural do São Francisco;
  • Falou sobre o Pacto da Legalidade que os estados devem fazer, e que não tem como cumprir a Lei 9.433, sem Comitês empoderados, e sem os instrumentos em pleno funcionamento (planos de bacias bem feitos, gestão de águas subterrâneas, informações hidrometeorológicas, etc.);
  • Mencionou que a outorga tem que ser baseada em informações técnicas e científicas, não pode ser “no escuro”; e que para isso é preciso que se tenha muito mais informações sobre os recursos hídricos do que se tem hoje;
  • E ainda falou que é preciso mudar a nossa visão de Estado; comentou que o Estado, hoje, tem medo da sociedade.
A vivência no Rio Doce
Felipe Benício, membro do Comitê da Bacia do Rio Doce e presidente do Comitê da Bacia do Santo Antônio (MG), criticou o desrespeito do poder público perante os comitês de bacia, e exemplificou com o caso do desastre da barragem da Samarco: o poder público ignorou o Comitê nesse momento de conflito. Não empoderaram o Comitê, cujo papel é justamente o espaço de solução dos conflitos em primeira instância. Não convidaram o Comitê a participar das discussões das providências e ações a serem tomadas. E que em vez de se determinar o pagamento das multas para o Comitê realizar as ações de revitalização - já que o Comitê já é a instituição com esse papel, criaram uma nova instância, uma Fundação, e sequer convidaram o Comitê a participar. E isso criou até um descrédito da sociedade civil a respeito da importância do comitê. Um prejuízo do qual vai se demorar anos para recuperar.

Um comitê baiano
Aurelino Meira, presidente do Comitê da Bacia do Rio das Contas trouxe a experiência de um comitê de bacia baiano; mostrou o funcionamento dos comitês; relatou os conflitos no Alto Contas com produtores de batata; falou sobre as deliberações do comitê a respeito das barragens em Piatã e das PCHs no rio Gongogi; e criticou a falta de infraestrutura dos comitês baianos, que não tem sequer uma sala com um computador, um telefone e uma impressora para trabalhar e organizar suas ações, enfraquecendo-os; e que devido a falta de recursos e apoio do poder público, muitos membros deixam de participar das reuniões por não ter condições financeiras. O presidente do comitê concluiu sua apresentação solicitando que o Estado dê infraestrutura mínima aos comitês da Bahia.

No debate da tarde, outros conflitos foram apresentados pelos participantes: coordenador do Comitê da Caatinga e representante do Conselho Gestor da APA Pedra do Cavalo questionou a insuficiência da fiscalização ambiental em Feira de Santana, a exemplo dos resíduos da QGM e o lixão à beira do rio Jacuípe; já um representante da APA Bacia do Cobre/Parque São Bartolomeu comenta que a barragem que já abasteceu Salvador, hoje se encontra abandonada, e a EMBASA ainda não resolveu o problema do esgotamento sanitário na região; reclama de falta de apoio da SEMA para a qualificação dos conselheiros e para promover a discussão com as comunidades, e que a que gestão não pode se fazer só com projetos e obras, tem que ter diálogo com a comunidade local. Também surgiram sugestões para o próximo seminário: convidar o poder legislativo para apresentar relatório detalhado sobre todos os gastos com recursos hídricos; e convidar representações de quilombolas, indígenas, ribeirinhos, para discutir os conflitos existentes na Bahia.

Carta das Águas 2016
Para finalizar o Seminário, foi lida e aprovada pelo público a “Carta das Águas 2016”, produto das discussões ocorridas ao longo do dia, e que sugere proposições para o aprimoramento da gestão dos recursos hídricos baianos, com enfoque na participação social.

Nenhum comentário:

Postar um comentário